Stille Nacht/Noite Feliz – A acidentada trajetória de uma canção – por Edgar Welzel, de Stuttgart, Alemanha
Há canções que aprendemos em tenra idade no convívio familiar, no jardim de infância, na escola, na igreja e até na rua. Algumas nos acompanham a vida toda. Suas melodias e seus textos preservam-se em nossa memória, enriquecem a nossa vida e, em idade avançada, não raro, nos servem de vínculo, de ponte para o nosso próprio passado. Nos aurores da vida não nos interessamos em saber quem foi o autor do texto, quem foi o compositor dos acordes musicais, como se originaram as melodias ou de que parte do mundo vieram.
Um destes exemplos é a canção natalina “Noite Feliz” cujo texto, oriundo do alemão, hoje é conhecido e cantado por mais de 2 bilhões de cristãos ao redor do mundo. Trata-se da mais conhecida melodia da cristandade e, como mais adiante veremos, não só da cristandade.
Nos vários gêneros musicais encontram-se exemplos de composições cujas origens, não raro, se perdem na penumbra dos tempos. Não é o caso da canção Noite Feliz, uma criação da Época Moderna. Sua origem e a sua espontânea propagação ao redor do mundo são uma história tão fascinante quanto desconhecida.
O berço desses acontecimentos, que tiveram início numa fria noite do inverno de 1818, é a pequena aldeia de Wagrain, encravada nos Alpes austríacos, nas proximidades de Salzburgo. Foi naquele ambiente invernal alpino que “nasceu” a canção Noite Feliz que se propagou ao redor do globo por meras ocorrências nunca programadas; a difusão ao redor do planeta foi espontânea, por simples acasos e, fato inacreditável, sem nenhuma participação de seus autores.
Naquele ano, Joseph Mohr era diácono da pequena paróquia católica na já citada aldeia alpina de Wagrain. O modesto padre-auxiliar era um indivíduo de comportamento frívolo, não compatível com as regras de conduta de sua ordem eclesiástica. Vivia beirando os limites da libertinagem. Assíduo frequentador da taverna de sua localidade, apreciava tomar cerveja com os aldeões e não perdia oportunidade para gracejar com as moças do lugarejo. Em vez de cuidar dos hinos e das canções de sua igreja, cuja liturgia na época ainda era em latim, Joseph preferia cantar canções do folclore alemão que acompanhava com sua guitarra e não cuidava em manter um bom relacionamento com os demais honoráveis da aldeia. Com tal comportamento o diácono não era candidato à carreira dentro de sua congregação. Seus superiores admoestavam-no por sua falta de espírito de subordinação e por seu comportamento não condizente a um representante do clero. Joseph Mohr, no entanto, não se importava com as repetidas reprimendas. Sempre que sentia ter ultrapassado os limites do tolerável, rogava a seus superiores que o transferissem à outra localidade o que aconteceu nove vezes.
Foi assim que Joseph Mohr chegou a Wagrain, sua última paróquia. Por razões inexplicáveis Joseph, curiosamente, mudou de comportamento. Tornou-se sério. Em Wagrain fundou uma escola, um jardim de infância, reformou o serviço de assistência aos pobres, cuidou do trato espiritual dos enfermos no hospital, enfim trabalhou incansavelmente para prestar bom atendimento a seus paroquianos. Morreu em Wagrain, sozinho e pobre, em 4 de dezembro de 1848. Sua herança: uma batina e uma guitarra.
Joseph Mohr e sua guitarra teriam sido esquecidos caso o padre, apreciador da música popular, não tivesse escrito alguns versos 32 anos antes de sua morte que passariam, sem que ele o planejasse, à História. Eram versos simples, escritos em língua alemã, de fácil compreensão, que até os mais modestos aldeões entendiam. Deu-lhes o título “Stille Nacht, heilige Nacht” que na versão portuguesa tornaram-se conhecidos sob a tradução imprópria de “Noite Feliz, Noite Feliz”.
Joseph redigiu estes versos em 1816 quando era diácono em sua primeira paróquia em Mariapfarr. Levou-os para a sua segunda paróquia em Oberndorf, onde, passados dois anos, no dia do Natal do ano de 1818, o órgão de sua igreja apresentara um problema técnico. Joseph Mohr não vacilou. Procurou o organista da aldeia vizinha, Franz Xaver Gruber, e pediu a este que lesse os seus versos de 1816 e compusesse uma melodia para duas vozes masculinas com acompanhamento de guitarra para substituir o órgão defeituoso.
Para Gruber a composição foi trabalho de poucas horas pois já na mesma noite, 24 de dezembro de 1818, o padre-auxiliar Joseph Mohr, de 26 anos, e o organista Franz Xaver Gruber, de 31 anos, cantaram “Noite Feliz” na missa do galo na igreja de São Nicolau em Oberndorf. Foi a première mundial de uma canção que hoje é ouvida e cantada no Natal ao redor do globo cujo texto foi traduzido em mais de 320 línguas e dialetos, incluindo línguas de países não cristãos como o turco, japonês, chinês, coreano, persa, árabe e outras línguas raras.
Após esta primeira apresentação o destino separou os dois homens e a canção foi esquecida no lugar de sua nascença. Passados alguns anos, mais uma vez por acaso do destino, um terceiro indivíduo entra nesta história: o construtor de órgãos, Carl Mauracher, de uma das localidades vizinhas, foi encarregado de consertar o órgão da igreja em Oberndorf que há anos não funcionava. Joseph ainda vivia, mas não mais se encontrava naquela paróquia. Já tinha sido transferido para outra aldeia.
Enquanto o técnico Carl Mauracher tratava de consertar o instrumento, deparou com alguns cadernos musicais impressos e algumas folhas avulsas com composições manuscritas. Em virtude de sua profissão, o especialista em órgãos Mauracher já conhecia muitas composições, mas entre as folhas avulsas encontrou uma que lhe chamou atenção. Era a composição do “Stille Nacht, heilige Nacht”, que lhe era desconhecida. A composição manuscrita tinha apenas um título, mas não trazia o nome do autor do texto nem o da composição musical.
Mauracher levou a composição consigo para a sua casa no Zillertal (Vale do Ziller, no Tirol Austríaco). Tocou-a no órgão e outros instrumentos e resolveu guardá-la. Ao aproximar-se o Natal (deve der sido em 1820; não há registros exatos), Mauracher resolveu fazer cópias que entregou a alguns grupos corais que incluíram a canção em seus repertórios natalinos daquele ano. Ao mesmo tempo, outras cópias foram feitas pelos regentes corais, distribuídas aos membros dos coros que, por sua vez, as levaram para casa. Com a divulgação de mão em mão, a desconhecida canção foi cantada em muitas famílias da região no mesmo ano e sempre repetida nos anos seguintes.
Já em 1832, o jornal “Leipziger Tagblatt”, de Leipzig (Alemanha), escrevia que os irmãos Strasser, em um concerto, atenderam ao pedido da audiência para cantar “a linda canção natalina Noite Feliz”. Mais ou menos nesta mesma época, a canção foi cantada em presença do imperador Francisco da Áustria e do czar Alexandre da Rússia.
Independentemente de quem a ouvia impressionava-se com a “genuína canção popular tirolesa”, cuja origem e cujos autores, nesta altura, ainda eram desconhecidos. Passaram-se mais sete anos e a canção, detalhe este devidamente documentado, fez parte do repertório de uma apresentação na Trinity Church em New York, no ano de 1839.
Em 1854, a Orquestra Real Prussiana de Berlim começou a se interessar pela origem da melodia. Após algumas pesquisas, o maestro da orquestra, por acaso, encontrou o regente do coral da igreja paroquial de Hallein (Áustria). Era Franz Xaver Gruber, o compositor da canção que, 36 anos depois da première, só então percebeu que ele e o diácono Joseph Mohr, possivelmente, foram protagonistas da criação de algo surpreendente. Em 30 de dezembro do mesmo ano (1854), Franz Xaver Gruber, entrementes com 67 anos, redigiu um pequeno texto explicando a “verdadeira história” que acontecera 36 anos antes, no dia do Natal do ano de 1818, dia da criação da hoje mundialmente conhecida canção natalina.
Joseph Mohr, nesta altura, já tinha morrido há seis anos. Em 1912, quando a municipalidade e a pequena paróquia de Wagrain, seu último posto de trabalho, resolveram homenageá-lo postumamente com um pequeno monumento, nem ao menos se sabia onde se encontravam seus restos mortais.
Enquanto isso, a canção já tinha sido divulgada pelos Continentes através do trabalho de missionários católicos e protestantes e tinha se tornado parte integrante dos livros de hinos e canções sacras próprias para a liturgia natalina.
Joseph Mohr, ao contrário de Franz Xaver Gruber, nunca fora retratado em vida. Não existia nenhuma gravura, nenhum desenho e nenhuma tela que lembrasse o diácono. Seu túmulo, depois de muita procura, afinal foi encontrado, e o crânio foi entregue ao escultor e pároco Joseph Mühlbauer, de Viena, para modelação de um busto. O artista terminou a obra, mas, por razões desconhecidas, o busto nunca chegou a Wagrain e, detalhe ainda pior, o crânio também desaparecera.
Tudo isto aconteceu em plena Primeira Guerra Mundial, e os autores do projeto que visavam homenagear o padre, postumamente, confrontaram-se com dificuldades financeiras. O crânio, depois de uma odisséia mirabolante, reapareceu em meados da década 20 do século passado e foi “sepultado” definitivamente no granito do altar da nova capela em Oberndorf que recebeu o nome de Capela Noite Feliz (a antiga igreja São Nicolau foi tombada em virtude de danificações causadas por enchentes).
É assim que a história é contada localmente e os registros oficiais não diferem muito desta versão. Mesmo assim, continuam existindo histórias, dúvidas, segredos e mitos no que se refere à origem da canção. Por esta razão, foi criada a “Sociedade Noite Feliz”, com o objetivo pesquisar e explicar os segredos e mitos que ainda continuam envolvendo o nascimento desta conhecida melodia.
Algumas dúvidas já puderam ser esclarecidas. A mais importante é que, após a sensacional descoberta de um manuscrito de Joseph Mohr no ano de 1995 em uma casa particular na Áustria, não existem dúvidas quanto à autoria do texto da canção. Junto com o manuscrito deixado pelo organista Franz Xaver Gruber fica comprovado que este é o autor da música para o texto que Joseph Mohr havia redigido em 1816.
Além disso, em 1998 descobriu-se que uma placa comemorativa, afixada na casa na qual Joseph Mohr teria nascido em Salzburgo, tinha sido afixada na casa errada. Confirmado também está que foi Joseph Mohr que tocou a guitarra na noite de Natal de 1818 e não o compositor Gruber, conforme registrado erroneamente em um vitral da igreja em Oberndorf.
Não existem, portanto, dúvidas quanto à autenticidade das seis estrofes da canção de Joseph Mohr, que ele redigira como poesia. Das seis estrofes originais, três são cantadas em nossos dias: a primeira, a sexta e a segunda, normalmente nesta ordem e isso em muitos lares e nas igrejas da cristandade ao redor do mundo.
Enquanto isso, Oberndorf transformou-se no centro do Turismo Noite Feliz. Na época natalina, milhares de turistas europeus e dos demais quadrantes do mundo vêm a Oberndorf , para participarem da cerimônia anual em homenagem aos autores da canção.
Nesta oportunidade, a canção das canções é entoada conjuntamente nas mais diferentes línguas (algo raro) e todos se entusiasmam com a beleza da composição quando esta é tocada na versão original com simples acompanhamento de guitarra: impressionante e sentimental, quase como uma canção de ninar.
Há alguns anos, ao passar o fim do ano nos Alpes enevoados da região de Oberndorf, participei de uma dessas cerimônias anuais. Impressionou-me ouvir a canção cantada em dezenas de línguas ao mesmo tempo, sem reconhecer nenhuma, pois todas se fundiam num todo uníssono no qual sobressai apenas a melodia, maviosa, profunda e retumbante. Tem-se a impressão de sermos participantes de uma Babel que se reduz a uma língua só.
A cerimônia é divulgada ao redor do globo via internet. Leitores interessados em acompanhá-la e em ouvir a versão original, assim como Joseph Mohr pedira que Franz Xaver Gruber a compusesse (duas vozes masculinas e acompanhamento de guitarra), podem ouvi-la no site: www.stillenacht.info/de/stille-nacht/noten.asp A cerimônia é transmitida todos os anos, dia 24 de dezembro às 17h (horário austríaco, meio-dia, horário de Brasília).
Uma reprodução da partitura do compositor (da qual alguns especialistas afirmam não ser o original) e uma reprodução fotográfica da guitarra de Joseph Mohr também encontram-se neste site. A guitarra original de Joseph Mohr encontra-se numa vitrina em Hallein, onde é objeto de atração num pequeno museu na última casa na qual viveu o compositor da melodia, Franz Xaver Gruber. Aparentemente esta guitarra estava pendurada, por décadas, na parede de uma taverna na pequena localidade de Kuchl (Áustria) antes que passasse às mãos dos herdeiros de Gruber, o compositor.
Os dois homens, o diácono Joseph Mohr, que tantas preocupações causara a seus superiores e que só a muito custo foi tolerado no seio da Igreja, junto com Franz Xaver Gruber, realizaram um raro, singular e notável trabalho. Nada, absolutamente nada, tinha sido premeditado. Tudo foi espontâneo, resultante de um problema técnico do órgão da igreja de Joseph Mohr. Se o órgão não tivesse tido um problema naquele remoto 24 de dezembro de 1818, é certo que o mundo não teria conhecido a maravilhosa melodia da canção “Noite Feliz”.
Passados 199 anos e, apesar de ser cantada ou tocada apenas na noite de Natal, hoje é uma das mais conhecidas melodias do Planeta.
No fim do século 19, a melodia tornou-se tão conhecida nos Estados Unidos que muitos americanos acreditavam ser a canção, que lá, em inglês, recebeu o título mais apropriado, “Silent Night”, uma música popular norte-americana. Esta impressão permaneceu até o fim da primeira metade do século 20.
Em 1943, a escritora austríaca Herta Pauli (1906-1973), que emigrara para os Estados Unidos, publicou um livro infantil com o título “Silent Night – The Story of a Song”, com o qual corrigiu esta distorção explicando as origens da célebre composição.
Na segunda metade do século 20, cantores como Elvis Presley, Frank Sinatra, Dean Martin, Johnny Cash, Bing Crosby e outros representantes da música popular incluíram a canção, com muito sucesso, em seus repertórios natalinos.
A Áustria, país rico em seculares tradições natalinas, é o berço da canção “Stille Nacht, heilige Nacht”. Em fins de 2011, passados 199 anos depois da première em 1818, a UNESCO declarou a composição patrimônio histórico da Humanidade de valor imaterial. Joseph Mohr e Franz Xaver Gruber, certamente nunca esperavam tornar-se imortais. Para os austríacos, os dois homens agora fazem parte desta seleta galeria. E isso apenas com uma canção. Noite Feliz.
*Edgar Welzel é colunista e analista político. Escreve sobre assuntos políticos e culturaris da Europa. O artigo ‘Stille Nacht’, por uma deferência especial do autor, é uma pubicação exclusiva de BrasilAlemanha.
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